sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Tropa “da” Elite

Do período onde se iniciou o debate de grandes proporções sobre o filme Tropa de Elite, de José Padilha, até eu mesmo assistir o filme, muito tempo se passou. Tanto que, mesmo antes de ver o filme, já conseguia arriscar algumas opiniões a respeito. Mas eu sabia que só quando assistisse conseguiria ter uma análise mais precisa do que aquele representava.

Já tinha ouvido falar que o filme era fascista, mas acho que essa afirmação não pode ser feita à seco. Deve-se caminhar por um exercício de lógica esdrúxulo, mas necessário!

O filme retrata a visão do BOPE na relação com o tráfico. A visão do BOPE sobre essa relação é fascista. Logo, o filme se torna uma importante peça de propaganda do fascismo instintivo que as elites possuem e transmitem, através da mídia, para os trabalhadores e excluídos.

Assisti ao filme num feriado prolongado, o que me permitiu, além de ver o filme enquanto obra cinematográfica brasileira, assistí-lo por várias vezes, me atentando às falas, cenas e subjetividades que, por vezes, passam até como objetividades.

O filme é narrado pelo Capitão Nascimento, que para parte da opinião pública é um herói, para a Veja, “trata bandido como bandido”, dentre outras interpretações que fogem ao razoável.

O Capitão Nascimento é um bandido, mártir de um processo de higienização social nas favelas do Rio de Janeiro, herói de uma elite que não admite conviver lado a lado com a miséria, situação esta que eles mesmos provocaram!

Aos que reivindicam a lei para o combate ao tráfico de drogas, o que são as ações do BOPE senão ações ilegais? A legitimação da violência contra a pobreza, e seu extermínio, com amparo estatal e reverberação na classe média e média alta.

O Rio de Janeiro traz em sua história, agravado pelo fato da cidade já ter sido capital federal, um currículo extenso de higienização social. Até mesmo a ocupação dos morros foi resultado de um destes processos, quando espalharam-se doenças contagiosas em regiões mais pobres, ainda no “asfalto”, para expulsar aquela parcela da população, visto que a população oriunda de Portugal vinha crescendo e precisaria ocupar aquele espaço. Não tendo pra onde ir, só seria possível subir para os morros.

Isso é o que se reflete na atuação do BOPE. A continuidade de um processo que se demonstra historicamente de “limpeza” da pobreza para conforto das elites.

Daí podemos verificar o seguinte, a visão do BOPE sobre a tal “guerra” é a visão da elite do Rio, ou seja, a favela é o espaço propício para a proliferação da criminalidade. Algum favelado que caminha no sentido contrário e consegue uma oportunidade no mercado formal de trabalho é uma exceção, mas serve de exemplo ao povo carioca de como é possível ser favelado e não ser bandido. Ou seja, os favelados, leiam-se pobres em geral, tem uma predisposição natural ao crime.

Não é à toa que o governador tosco do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, defende o aborto como método de redução de violência, ou seja, menos pobres nascendo, menos bandidos em potencial. Declaração bastante estapafúrdia que demonstra a quem serve o governo.

Se o filme tivesse a preocupação de ouvir o outro lado, ou seja, quem sofre com a atuação do BOPE, talvez tivesse evitado algumas críticas. Mas ele não teve essa preocupação.

É preciso também contextualizar o filme. Ele se passa em 1997, num período onde ainda não havia o chamado “Caveirão” e ainda não havia sido expulso nenhum membro do BOPE por corrupção. Aliás, uma das marcas do BOPE à época era a “incorruptibilidade”. Tão marqueteira quanto falaciosa, pois quem fere direitos constitucionais do cidadão, mesmo o infrator, também corrompe à lei (mesmo a legislação burguesa)!

De lá pra cá, muita coisa mudou, seja no tráfico, ou no BOPE. O tráfico vem perdendo espaço em algumas favelas importantes para as milícias (fascistas extra-oficiais) e o BOPE já convive com casos de corrupção, inclusive com casos de aluguel de “Caveirões” para o tráfico em suas incursões em favelas de outras organizações do crime.

E aí entra outra questão que mudou de lá pra cá, o “Caveirão”. Carro blindado que parece um tanque de guerra, usado pelo exército israelense contra os levantes palestinos (ou seja, veículo a serviço do fascismo em nível mundial), que cumprem o papel de fazer o BOPE avançar sobre o morro pelas vias principais do mesmo, visto que o tráfico se aloca em casas com visão privilegiada dos acessos ao morro, atirando na polícia quando esta chega próxima. Além disso, ele tem alguns orifícios onde é possível colocar o cano do fuzil dos policiais para fora e atirar indiscriminadamente, sem ver o alvo. Ou seja, o “Caveirão” não vem cumprir mandados judiciais contra bandidos, mas sim para matar moradores da favela que estiverem pela frente.

Se fez “necessário” porque o BOPE era “convocado” pelo Estado com cada vez mais freqüência, perdendo o elemento surpresa em suas ações. Daí a necessidade de se “proteger”.

Daí, retomo à idéia de se ouvir o outro lado. Que tal o ponto de vista das famílias que perderam inocentes pelas balas do BOPE de dentro dos “Caveirões”? Que tal o ponto de vista de quem perdeu parentes na ação que antecedeu os Jogos Panamericanos no Rio, matando 19 pessoas, das quais 10 não tinham passagem pela polícia? Fica o desafio para José Padilha.

A glamourização da atuação do BOPE, através do seu mártir destemido, o Capitão Nascimento, tem provocado reações na sociedade, majoritariamente favoráveis, atingindo inclusive setores mais pauperizados. Isto é resultante de uma ação que não é só do filme, mas também da comercialização da violência pela mídia. Existe a criação de um ambiente no Rio de Janeiro muito mais violento do que ele realmente é, e isso favorece às interpretações mais fascistas do filme. Vide matérias no Jornal Nacional, quase que diárias, sobre tiroteios nas ruas do Rio, inclusive de bairros mais nobres como Copacabana e Ipanema.

O Rio tem uma peculiaridade, seus morros cortam os bairros ricos, estão espalhados por toda a cidade. Logo as contradições sociais acirram-se. Imagina como deve ser agradável morar numa favela com vista pro hotel mais luxuoso do Rio!

Já em São Paulo, onde moro, a elite teve a preocupação de empurrar a miséria para os cantos da cidade. Lá, onde a polícia também barbariza a população, não vira notícia, primeira página de jornal, capa de revista, afinal alguém como João Pedro, o menino arrastado por um carro na Zona Norte do Rio, nunca teria passado por lá. Quem morre lá é pobre, então não interessa pra Globo! Diferente de Copacabana, Leblon, etc.

Existe outro ponto que o filme aborda, e sobre esse também há o que se dizer. Trata da responsabilidade da classe média alta no financiamento da máquina que se tornou o tráfico.

No filme, um playboyzinho vende drogas na universidade em que estuda se valendo de uma ONG instalada no Morro dos Prazeres, onde estabelece contato com o “dono” do morro, compra a droga e a revende, sob a fachada de um “trabalho social”, que inclusive está a serviço de um candidato a Senador, e taí algo interessante, o número dele é 451, o que leva a crer que ele é do PSDB, embora não se afirme isso. Nada mais apropriado.

O questionamento interessante disto é sobre as ONG’s que atuam nas favelas. Sabe-se que muitas delas atuam a serviço de um político picareta que angaria votos na favela. Sabe-se também que todas elas atuam com o consentimento do tráfico, mas isso é um fenômeno igual a tudo que ocorre no morro, porque ao contrário do tratamento que o filme dá para o tráfico, os traficantes e associados não são entes estranhos ao morro, mas sim parte dele. Sofreram com a mesma miséria dos demais moradores e conhecem as necessidades deles, por isso são mais “considerados” que o Estado, que só age através da repressão policial. Retomando o raciocínio, a quem servem as ONG’s? Entendo que seja somente à manutenção do status quo.

Quanto ao papel do usuário, devemos debates sob outra perspectiva, que aliás o filme não aborda. O grande sustentáculo do tráfico é a proibição do uso!

O tráfico de drogas nada mais é do que uma estrutura do capital paralela ao Estado. E o usuário nada mais é do que um consumidor dessa estrutura. É o elo mais frágil dessa corrente, pois é, na verdade, alguém que necessita de políticas públicas na área da saúde, para tratamento do vício.

Mas ainda se trava este debate com muita hipocrisia na sociedade, hipocrisia esta que o filme, além de não combater, ainda “surfou na mesma onda”.

É possível que o filme seja premiadíssimo, concorra ao Oscar, ou até ganhe o mesmo, porque, enquanto obra, é um excelente filme. Mas que ninguém deve optar por uma visão purista do filme, colocando a visão do BOPE como verdade dos fatos, é também uma realidade.

Abraços,

Bruno Padron (Porpetta)

Publicado em dezembro 14, 2007 de 6:46 pm

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