quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

As lições que ficam

A entrevista de Neymar (vídeo abaixo), após a nulidade de bola que o Santos mostrou, perante a exuberância do Barcelona, é daquelas que nos fazem refletir.

Sim, existem lições deixadas pelo jogo. Mas quais são elas? São somente para o Santos? Se restringem ao futebol profissional no Brasil?

Não! Definitivamente, não!





Não sou daqueles que acham que treinador ganha jogo. Ajudam, mas não ganham.

Quem ganha são os jogadores. A eles cabe aplicar toda a ciência do futebol na prática.

Nosso futebol brota das ruas, com ou sem asfalto, dos campos de terra batida, das praias, ou de qualquer tipo de solo minimamente plano, onde seja possível cravar dois pedaços de madeira ou estender dois chinelos em paralelo. Daí tem-se o gol. A bola é feita de qualquer coisa que tenha, ou possa adquirir, uma forma razoavelmente arredondada. Nasce assim, mais uma pelada.

A pelada é o verdadeiro futebol brasileiro


Na pelada não tem esquema tático. As crianças querem gols, mais nada. E saem vários! Seja para um time só, ou para os dois.

Mesmo entre os adultos, já cheios de informações sobre as rotinas do futebol profissional, o gol é muito mais valorizado que a boa marcação. Embora já tenha uns e outros que se dedicam quase exclusivamente a desmanchar as jogadas do adversário.

Em qualquer pelada, o condicionamento físico não é uma exigência. Gordinhos e magrinhos, bebuns e abstêmios, fumantes e atletas, se misturam em torno da bola. Uns aguentam mais, outros menos, mas no fim da pelada estão todos cansados, mas não o suficiente para impedir guloseimas para crianças, ou cerveja para os adultos.

Quando crianças é até melhor! Jogam meninos e meninas juntos, e ninguém ainda sabe direito o que é esse troço chamado preconceito.

De qualquer forma, é aí que o futebol brasileiro nasce. Com improvisação, sem ensaio.

A ciência do futebol deve ser um aditivo à essência do nosso jeito de jogar. Quando se pensa o contrário, o Brasil se acultura.

Ao longo da história do nosso futebol, as contribuições táticas foram importantes para desenvolver o melhor de cada jogador, sem interferir na improvisação.

Os grandes times da nossa história - como o Santos de Pelé, o Flamengo de Zico, o Cruzeiro de Tostão, o Botafogo de Garrincha, o Palmeiras de Ademir, o Inter de Falcão, o Vasco de Ademir Menezes, o Corinthians de Sócrates, o Fluminense de Assis, entre outros grandes times - marcaram-se pela união perfeita entre o talento e a disposição tática.

Esta é, também, a maior marca das grandes seleções brasileiras na história das Copas, vencedoras ou não.

As derrotas, encaradas como tragédias, e as vitórias, como grandes negócios, serviram para justificar a descaracterização de nossas raízes. A importação de conceitos europeus, quando estes já eram ultrapassados até mesmo na Europa, serviu para tornar o jogador uma máquina, o esquema tático é uma linha de produção e o resultado vira sinônimo de lucro.

Os clubes formam máquinas, ao invés de jogadores


Desde a base, aqueles garotos que batem bola descompromissadamente nos campos de pelada, de repente, passam a ser avaliados pelo seu porte físico, sua capacidade pulmonar, sua capacidade de se adaptar a um jogo mais "duro".

Quanto mais esta exigência se faz presente, menos a técnica e, em especial, a improvisação são levadas em conta. Elas não desaparecem, afinal de contas ainda não importamos jogadores em larga escala, e a nossa molecada acaba trazendo essa "malemolência" de berço.

Porém, ela vai determinando um novo perfil ao jogador profissional brasileiro. Apesar de nunca termos vencido a competição de futebol olímpico, nossos talentos estão cada vez mais rápidos, mais altos e mais fortes, além de um forte senso de obediência tática.

Aí está outra questão: a obediência. Nossos craques pensam menos que outrora. Não só porque nosso país não lhes dá muita oportunidade para desenvolver senso crítico diante da vida que eles mesmos levavam antes do profissionalismo, mas também porque são adestrados a obedecer aos comandos dos cientistas do futebol.

Além do treinador, cujo poder soberano de determinar como, onde e até porque jogam, existem, desde muito cedo, preparadores físicos, médicos, fisioterapeutas, massagistas, fisiologistas, nutricionistas, e uma infinidade de profissionais que "orientam" o desenvolvimento da garotada. É bom ressaltar que pouquíssimos clubes possuem professores e psicólogos em suas equipes técnicas. Ou seja, se devem ser máquinas de jogar bola, estas não precisam pensar e sentir.

A ideia de comando introduzida por Havelange


E como o futebol, tal como quase tudo que vemos, é um negócio, submetido a um mercado, e este também é "humanizado" pelos tecnocratas de plantão, sujeito a alterações de humor que beneficiam sempre os maiores contra os menores, não poderia faltar um personagem decisivo nesta história: o empresário.



Os dirigentes de clubes e federações são, em sua imensa maioria, homens e mulheres de famílias tradicionais, cheios de posses, e manter tal status exige o esforço de ampliar constantemente seus rendimentos. São responsáveis pela paixão de milhões de despossuídos, onde alguns destes vislumbram a possibilidade de ascensão social por meio dela, e fazem disso seu grande negócio.

Quase todos os garotos, ainda nas categorias de base, já possuem empresários. Muitos destes mercadores de gente mantém "parcerias" com dirigentes de clubes, colocando seus garotos no time, valorizando seus produtos.

Mudam as rotas, a história permanece


Sem a figura do empresário, o ingresso do garoto no clube fica muito mais difícil. Neste momento, vários talentos se perdem pela vida.

O Barcelona não é o contrário de toda esta lógica. Pelo contrário, é um dos times mais ricos do mundo e faz negócios da mesma forma que os outros. A diferença é como faz os negócios.

Times como o Real Madrid, e suas constantes constelações globais (refiro-me ao globo, não à Globo, embora Cristiano Ronaldo pareça um galã de novela das sete), fazem negócios através de endividamento. É da política do seu presidente, Florentino Perez, endividar-se para lucrar.

Lucrar, lucra. Mas ganha muito menos, no campo, que seu arquirrival.

Aqui no Brasil, os clubes tomaram atitudes distintas para entrar bem no jogo dos negócios.

Apesar de uma peculiaridade comum, o crescimento da importância dos Departamentos de Marketing no organograma dos clubes, cada um tomou uma direção diferente no "produto" a ser vendido.

Enquanto clubes como Corinthians e Flamengo apostam em contratações bombásticas, que elevam os lucros, apesar dos resultados ficarem abaixo das pretensões, o Santos optou por segurar suas revelações. Toda a estratégia de marketing do Santos passa pelo passado, presente e futuro do próprio clube. Não à toa, os garotos-propaganda do centenário do clube são Pelé, Ganso, Neymar e, nas quadras, Falcão.

Assim, o Santos chegou ao Mundial Interclubes. Com dois craques no time e, nas palavras do seu próprio presidente, um DNA ofensivo.

O DNA ofensivo, em cores semelhantes às do Barça


Só que o tal DNA foi absolutamente dissecado pelo Barcelona. Qual a diferença? O azul-grená da Catalunha desenvolve este projeto há 30 anos!

Antes que Messi sequer cogitasse a hipótese de nascer, iniciava-se uma nova cultura de futebol no Barcelona. Uma aposta no desenvolvimento de suas divisões de base, fundamentadas em um conceito de futebol bem jogado que, para além de nos brindar com o melhor time do mundo na atualidade, demonstra o mesmo padrão de jogo nas divisões inferiores.

As grandes contribuições catalãs à arte: Miró, Gaudi e o time do Barcelona


Obviamente, tal reconhecimento cobra seu preço. O futebol do Barcelona garante a alegria financeira de muita gente, desde os dirigentes até as transmissoras de seus jogos, que vendem o produto catalão de maior refinamento no atual período. De repente, só se fala da cidade de Barcelona pelo seu time de maior expressão. Gaudi e Miró acabam ficando em segundo plano, para a maioria do planeta.

E qual foi a grande inspiração deste projeto, do ponto de vista do futebol? Justamente, o futebol brasileiro.

O Barcelona dá um toque de modernidade às melhores características do futebol brasileiro. Para isso, importa garotos, mas também desenvolve o futebol dos catalães. A maior parte dos jogadores formados no clube é da própria região da Catalunha.

Os garotos importados, em geral, são sulamericanos. O maior exemplo de todos é o argentino Messi, mas já figura entre as principais peças da equipe o (ex) brasileiro Thiago Alcântara, agora naturalizado espanhol. Seu irmão, Rafael Alcântara, joga no Barcelona B e foi testado no time principal em um jogo da Liga dos Campeões, e tenta ser visto pelas seleções de base brasileiras. Até o momento, sem sucesso.

Enquanto incorporamos o que há de pior no futebol europeu, eles incorporam o que há de melhor no nosso. Não parece uma troca justa.

Taí uma grande lição que o Barcelona deu, não só ao Santos, mas a todo o Brasil. Que tal resgatarmos o que temos de melhor?

O Santos é o único que, até o momento, caminha nesta direção, embora ainda de forma incipiente.

Mas perdeu, e feio, para o Barcelona porque ainda carrega um "comandante" que determina um terceiro zagueiro, a ausência do experiente Elano, e uma postura covarde diante de um Golias que, como na mitologia bíblica, pode ser derrotado.

Também porque não forma consciências, com craques que vivem em propagandas e negociações contratuais milionárias, mas são crianças, comparados ao gigantes catalães. A Neymar, ainda falta um pouco mais de maturidade para definir coletivamente o jogo. A Ganso, mais inteligência ao tratar de suas questões negociais.

A grande estrela do Barça, Lionel Messi, tem a maior multa contratual do mundo e, dificilmente, sairá algum dia de lá. Mesmo durante a crise espanhola e europeia, o Barcelona continua rico. Agora, pela primeira vez em sua história, com patrocínio na camisa, mas em todo o tempo com uma legião gigantesca de sócios do clube.

Temos uma população muito maior que a da Espanha, em condições sócio-econômicas diferentes, mas completamente apaixonada por futebol. Uma imensidão de gente que teria orgulho em ser sócio de seu clube de coração, mas os clubes não foram feitos para eles.

A estrutura do futebol brasileiro é anti-democrática ao extremo. O clube de maior torcida do Brasil - Flamengo - possui quase 40 milhões de torcedores, e sua metade presidenta, metade vereadora, foi eleita por pouco mais de dois mil sócios.

Quantos craques ficaram para trás?


Se em Barcelona, os donos do clube não deixam de ser da elite catalã, no Brasil faz-se tudo para perpetuar este caráter de controle da classe dominante, de qualquer jeito. Assim, podem continuar a auferir lucros exorbitantes em um país repleto de mazelas, sem que ninguém lhes possa, ao menos, perturbar. Que dirá tomar-lhes os clubes!

Nesta hora, fazem falta os Sócrates da vida... Se ninguém, no mínimo, reclama, de que jeito fica?

Por tudo isso, um futebol mais democrático, menos negocial e que valorize aquilo que temos de melhor, são elementos importantes para resgatar o nosso elo perdido, vencendo ou não.

Mas se as vitórias são negócios, a derrota acaba ensinando pouco. Pelo contrário, no business do futebol, perder é deseducativo, acostumados que somos aos números.

A vitória esmagadora do Barcelona, pelo menos, coloca um pouco isso tudo em xeque. Quem sabe, alguém se toca?


Valeu,

Bruno Porpetta

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Seu comentário será moderado e pode não ser incluído nas seguintes hipóteses:

1 - Anônimo

2 - Ofensivo

3 - Homofóbico

4 - Machista

5 - Sexista

6 - Racista


Valeu,

Bruno Porpetta