quinta-feira, 7 de agosto de 2014

“A estrutura do nosso futebol é reacionária, corrupta e corruptora”

JUCA KFOURI – Um dos mais conceituados jornalistas esportivos do país fala ao Brasil de Fato



Por Bruno Porpetta (RJ)

José Carlos Amaral Kfouri ou, simplesmente, Juca é cientista social de formação, mas foi no jornalismo que deixou um legado fundamental. É uma referência de jornalismo esportivo comprometido com os fatos e o crescimento do esporte no Brasil e tal postura, por si só, o fez romper com os círculos de poder dos dirigentes.

Nesta entrevista, Juca analisa a situação do futebol brasileiro e suas perspectivas após a votação do Proforte, a Lei de Responsabilidade Fiscal do futebol, sem poupar ninguém e da maneira que o notabilizou, com independência. Confira:

Brasil de Fato – Às vésperas da votação do Proforte, na Câmara, a presidenta Dilma se reuniu com o Bom Senso numa semana e na outra semana com os clubes. O que está exatamente em jogo?

Juca Kfouri – Está em jogo, de fato, que ao invés de mudar o modelo de gestão do futebol brasileiro, vamos ter mais uma maneira de disfarçar os problemas deste modelo, que é aprovando aquilo como os clubes querem, um “me engana que eu gosto”. Eles vão fingir de novo que vão pagar as dívidas e não vão ser responsabilizados se não pagarem.

A contrapartida a esta possibilidade é que se aprove aquilo que o Bom Senso quer, propondo que, a cada benefício que os clubes consigam na renegociação da dívida, haja uma responsabilidade correspondente. Foi este o compromisso que a Dilma assumiu com o Bom Senso FC. Fazer desta nova legislação um dos legados para o futebol após a Copa do Mundo.

Então ou vamos ter, neste Proforte, uma forma disfarçada da Timemania, ou teremos uma nova lei que faça com que os clubes se responsabilizem por aquilo que fazem na gestão do seu dia-a-dia.

Brasil de Fato – Algumas diretorias eleitas em clubes representaram um “sopro de esperança” no futebol brasileiro, como Belluzzo (Palmeiras), Dinamite (Vasco), Bandeira de Mello (Flamengo) e Bebeto de Freitas, sucedido por Maurício Assumpção (Botafogo). Por que fracassaram neste sentido?

JK – O problema estrutural é tão grande, tão forte, a estrutura do nosso futebol é tão reacionária, tão avessa a qualquer tipo de mudança, tão corrupta e tão corruptora, que a questão não se altera com nomes. As pessoas acabam tragadas por essa estrutura.

O melhor exemplo é o do Belluzzo. Eu cheguei até a escrever, depois da malfadada gestão dele no Palmeiras, que se o Belluzzo fracassou, eu fracassaria mais ainda do que ele, porque ele é mais bem preparado do que eu. Precisa mexer é nessa estrutura, de forma tal que, democratizada, ela permita um respaldo a quem venha gerir o futebol de forma diferente do que temos hoje.

Durante muitos anos, achei que um Dinamite no Vasco, um Zico no Flamengo, um Rogério Ceni no São Paulo, seriam soluções. Não são nessa estrutura, porque eles tem que se adaptar a ela, tem que prestar vassalagem à CBF.

Houve uma inversão no nosso futebol. A CBF, que deveria ser uma entidade a serviço dos clubes, virou uma entidade a serviço de si mesma. As federações, que deviam ser meios, viraram fins. E os clubes acabam se submetendo a isso de maneira subserviente.

Mexer na estrutura significa, por exemplo, os clubes se transformarem em sociedades empresariais. Não como na Inglaterra, que permite que um sheik ou um milionário russo compre um clube, mas como na Alemanha, que se garanta 51% para os sócios, permitindo uma gestão profissional, empresarial.

Brasil de Fato – A Copa Verde, projeto da CBF para atender a reivindicação de centros menos desenvolvidos, como o Norte, o Centro-Oeste e o Espírito Santo, para jogar um torneio mais rentável e visível. Não deu certo e, além disso, o campeão foi definido no “tapetão”. O que dizer sobre isso?

JK – Então, aí você tem duas questões. A primeira questão é a criação de paliativos. Por exemplo, um bom paliativo é a Copa do Nordeste, mas é por muito menos tempo do que deveria. Quais as duas questões centrais pro Bom Senso FC? O fair play financeiro, e o calendário do futebol brasileiro. Que é o calendário do único exército que tá marchando de um jeito, enquanto todos os outros marcham de outro jeito. Não se trata mais de falar da adequação ao calendário europeu, mas sim ao calendário mundial.  É o que, não apenas a Europa, mas a Argentina, México, Uruguai... Enfim, os países que contam no mundo do futebol hoje têm. Por questões eleitorais, pra manter as capitanias hereditárias e esse modelo coronelista do nosso futebol, você tem os campeonatos estaduais.

É incompatível com qualquer solução, de médio ou longo prazo, para os clubes menores, que os campeonatos estaduais permaneçam como estão.

O Tribunal de Justiça Desportiva, da maneira como é feito no Brasil, vira um instrumento de poder. Ele tem a mesma eficácia da escala de árbitros que, por mais que você tente minimizar com sorteios e tal, permanece sob administração das entidades dirigentes. Tanto a arbitragem como a justiça desportiva deveriam ser instituições absolutamente independentes das federações e dos clubes. Na verdade, as federações não fazem mais nenhum sentido. Federação de futebol estadual é como jaboticaba, só tem no Brasil.

A justiça desportiva tem que ser, por exemplo, como a gente vê na Copa do Mundo, que é o chamado rito sumário. Você tem lá o regulamento, as faltas, o que equivale a cada falta em termos de punição e simplesmente aplicar. Não essa palhaçada bacharelesca que a gente tem no Brasil. Tão simples quanto isso, mas é muito difícil porque é um instrumento de poder. Faz parte dessa estrutura podre do nosso futebol.

Brasil de Fato – Como a CBF é uma entidade privada, há uma série de dificuldades do ponto de vista legal para mudanças. Quais os caminhos para democratizar a CBF e o papel do governo e da sociedade nisso?

JK – O papel da sociedade, infelizmente, até hoje a gente não viu no que diz respeito a CBF. A gente vê torcedor se mobilizando pra ir bater em jogador em treino de time quando perde no domingo, e a gente não vê mobilização em torno da exigência de democratização da CBF, nos clubes e tudo mais. O torcedor, por enquanto, se restringe à questão dos resultados dentro de campo e a sua indignação não passa disso, porque ele não vê a questão estrutural.

Quanto ao fato da CBF ser uma entidade privada, é sim, mas de óbvio interesse público. O futebol é considerado, pela Constituição, patrimônio cultural do povo brasileiro. É, portanto, submetido à fiscalização do Ministério Público Federal. O hino que toca quando o time da CBF perfila antes de um jogo não é o hino da CBF, é o hino do Brasil. As cores do uniforme não são as cores do time da CBF, são as cores da bandeira do Brasil.

Existe um artigo na Constituição que é muito usado, de maneira desonesta, ou por ignorância, inclusive, do Judiciário brasileiro, que é o artigo 217. Fala da autonomia das entidades dirigentes, é o mesmo escudo que a CBF usa por não se abastecer de dinheiro público, diferentemente dos esportes olímpicos. Há uma decisão do STF, do ex-ministro Cezar Peluso, o último ato dele como ministro do STF, numa ADIN contra o Estatuto do Torcedor, exatamente por, de alguma maneira, interferir nessa tal autonomia.

O relatório do Peluso, aprovado por unanimidade no STF, é no sentido de que autonomia não equivale a soberania.

Por exemplo, a universidade pública brasileira é autônoma, e é bom que seja, mas isso não dá a uma faculdade o direito de estabelecer o currículo que ela queira. Quem estabelece o currículo é o Ministério da Educação, o Estado brasileiro.

A autonomia deveria ter este limite. Acaba não tendo, não só porque nós estamos no país dos bacharéis que gostam de trabalhar a ambiguidade, como porque há uma grande ignorância por parte dos juízes todas as vezes que essa questão aparece. Quando as entidades se defendem falando em nome da autonomia, boa parte dos juízes desconhece essa decisão da STF. Então o caminho é uma PEC, que o governo deveria propor para eliminar de vez essa dúvida e acabar com essa coisa da autonomia posta nesses termos.

Brasil de Fato – Dunga pode estar envolvido com agenciamento de jogadores, além de Gilmar Rinaldi ter deixado de ser empresário da noite para o dia, antes de assumir o cargo de diretor de seleções. O que propõe a CBF com estas novas nomeações?

JK – O passadismo, a mercantilização, a pouca transparência, a pouca vergonha. A CBF é responsável por transformar a seleção brasileira na grande grife do nosso futebol, em detrimento dos clubes. Eu sou de uma época em que, uma excursão do Santos de Pelé, era paga com valores comparáveis ao que se pagava por um amistoso da seleção. Da mesma maneira, o Botafogo de Mané ou o Palmeiras de Ademir da Guia. Isso acabou.

A CBF faz um calendário que impede que os nossos clubes façam jogos durante o período de pré-temporada na Europa, ela vende a sua camisa em todas as lojas esportivas do mundo e você não encontra uma camisa de clube brasileiro nelas, embora encontre de argentinos.

Você encontra do Boca, do River, mas não encontra do Flamengo, time mais popular do país. Não encontra do Santos de Pelé, do Corinthians, bicampeão mundial. Tem do Bayern, do Milan, da Juventus, do Barcelona, do Real Madrid, do Paris Saint-Germain e dos times argentinos. Esta é uma política deliberada de uma entidade que se compraz de ver o nosso futebol como mero exportador de pé-de-obra, nós em vez de exportarmos o espetáculo, exportamos os artistas.


Como se a Disney, em vez de vender seus filmes, vendesse o Pato Donald, o Mickey e o Pateta. É isso que nós fazemos. Então esta é uma política deliberada e deletéria, aprimorada pelo Ricardo Teixeira, sob as luzes de João Havelange.


Valeu,

Bruno Porpetta

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Bruno Porpetta