quarta-feira, 24 de julho de 2013

De 62 a 68, em 51 anos (o Brasil de Amarildo a Amarildo)

Pelé saía de campo lesionado, no empate em 0 a 0 entre Brasil e Tchecoslováquia.

Diante de tal tragédia, a alternativa mais viável para Aymoré Moreira era colocar o ataque do Botafogo pra jogar. Que parceiro faria melhor companhia à Garrincha senão seu companheiro Amarildo?



Aquele time, já um pouco envelhecido, contava com o agora saudoso Djalma Santos (ao qual este blog se curva em reverência), além do infernal Garrincha e o "Possesso" Amarildo, mais um grande artilheiro do nosso futebol, mais um que deve ao Anjo das Pernas Tortas seu contrato para jogar na Europa.

Amarildo editou, junto a Garrincha, belíssimas páginas da história do Botafogo e da seleção brasileira. Páginas que inspiraram amantes do futebol, nos estádios e nos cartórios.

Não é de hoje que jogadores de futebol eternizam seus nomes nos filhos dos outros. As homenagens feitas a craques no registro de crianças recém-nascidas é notória e antiga.

Em uma delas, em 1966, nasceu Amarildo.



Amarildo Dias de Souza era um pedreiro. De tanto carregar pedras, assim como craque alvinegro, também ganhou um apelido. Era chamado de Boi.

Cresceu na Rocinha, a maior favela do Rio de Janeiro. Que os bairros de São Conrado e Gávea fingem não existir. Mas ela existe.

Tal como as demais favelas, cresceu desordenadamente, sem planejamento, sem água, sem luz, sem esgoto. Se tornou um depósito de gente descartada do "asfalto". Gente invisível, como se não fossem gente.

Nesta ausência do básico, é duro não se revoltar. Nesta revolta sem perspectiva, o crime aponta uma saída fácil, às vezes única. Assim, aos 17 anos, o jovem Amarildo registra sua única passagem policial, por furto.

A característica de pé-de-boi, que lhe rendeu o apelido, impediu que Amarildo trilhasse este caminho. Não fosse por isso, já estaria morto há muito tempo. O crime só compensa a curto prazo, até porque o prazo é necessariamente curto pra quem vive dele.

Entre a vitória da seleção do Possesso e o nascimento do Boi, sob a "iminente ameaça comunista", o país iniciou-se no capítulo mais vergonhoso de sua história. Em 64 os militares tomaram o poder e levaram consigo nossa liberdade. O Amarildo da Rocinha nasce em um Brasil proibido de pensar.



Com apenas dois anos de idade, Amarildo ainda não tem consciência, mas seu país mergulha nos piores anos desta excrescência que foi a ditadura militar. O Ato Institucional nº5 foi editado para liberar a tortura, o assassinato.

O jovem Amarildo deve ter visto pela TV, na telinha da Globo, milhares de pessoas na Praça da Sé, em São Paulo, comemorando o aniversário da cidade.

Mal sabia ele que, na verdade, lutavam por democracia no Brasil. Isto, a Globo não contou a ele.

Amarildo, com 23 anos, pela primeira vez votou para Presidente da República. Acreditou viver em um país democrático, retornando às urnas nos anos pares que se seguiram para cumprir o único direito que lhe foi concedido, já que todos os outros lhe eram sistematicamente negados.

Talvez tenham lhe ensinado que o Brasil foi "descoberto" por Cabral, até porque o massacre dos povos originários não permitiu que estes contassem sua história. E a vida (ou a "democracia"), lhe colocava diante de outro Cabral, mais de 500 anos depois.

Pela TV, lhe diziam das maravilhas que transformavam as favelas em territórios pacificados, longe dos crimes que Amarildo se recusou a prosseguir cometendo. Ele, que nasceu no país proibido de pensar, mais uma vez acreditou no que a TV lhe mostrava.

O que talvez não tenham lhe dito é que, para favelados como ele, só havia uma paz possível. A paz do porrete. O Estado, como foi por toda a sua vida, só se fazia presente através da polícia. Ainda assim, para Amarildo, a esperança de dias melhores.



O Boi acreditava que, carregando pedras, construiria uma vida melhor.

Assim, viu a seleção brasileira vencer, sem o Possesso que lhe dava o nome, mais três títulos mundiais. Viu a urna de votação, e ali a possibilidade de escolher qual país ele queria. Viu a UPP chegar à favela com status de heróis da liberdade. Viu o povo voltando às ruas para reivindicar direitos.

Depois disso, não viu mais nada.

No estado de exceção criado por Cabral, foi levado pelos policiais - os mesmos que resgataram sua esperança - para dentro do posto de comando da UPP da Rocinha, sem mais nem menos. Nunca mais foi visto.

Tal como naqueles anos, em que Amarildo ainda era uma criança, e pessoas desapareciam nas mãos sujas de sangue dos militares, chegou a sua hora.

Não teve tempo sequer de ver Cabral editar o "novo AI-5", retomando uma vergonhosa ditadura que seu partido disse um dia combater. Nem mesmo pedir perdão por eventuais pecados ao Papa.

Nem foi digitalmente incluído, para poder, pelo Twitter, dizer ao Papa o que a PM do Rio andava publicando por lá. Talvez o Papa perdoasse, inclusive, os pecados da PM. Não houve tempo.

Tal como Djalma Santos, Amarildo não está entre nós. Que Deus os tenha! Não é não, Papa Chico?

Ao menos Djalma terá um velório.

Amarildo, que viveu sem luz, sem água, sem esgoto, mas com orgulho, não teve escolha. Mesmo ao morrer, não tem direito a seu próprio corpo, nem à verdade, nada!

Sua família e sua favela exigem saber, mas continuam sem respostas. São recebidos a balas e bombas no Leblon.



O que o governo Cabral e a PM do Rio não querem dizer, nem Aymoré Moreira dá jeito.

E agora? Sem Pelé! Cadê o Amarildo?


Valeu,

Bruno Porpetta


N.B.: A homenagem ao Possesso é ficcional, assim como os programas de TV que ele por ventura assistiu durante a vida. Gostaríamos muito de poder perguntar ao próprio sobre isto. Pode ser, Cabral?

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